quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Precisa-se de matéria prima para construir um País

«A crença geral anterior era de que Santana Lopes não servia, bem como Cavaco, Durão e Guterres. Agora dizemos que Sócrates não serve. E o que vier depois de Sócrates também não servirá para nada. Por isso começo a suspeitar que o problema não está no trapalhão que foi Santana Lopes ou na farsa que é o Sócrates. O problema está em nós. Nós como povo. Nós como matéria prima de um país. Porque pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito aos demais.
Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO-SE OS DEMAIS ONDE ESTÃO.
Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos... e para eles mesmos.
Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos.
Pertenço a um país:
- Onde a falta de pontualidade é um hábito;
- Onde os directores das empresas não valorizam o capital humano.
- Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e, depois, reclamam do governo por não limpar os esgotos.
- Onde pessoas se queixam que a luz e a água são serviços caros.
- Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é 'muito chato ter que ler') e não há consciência nem memória política, histórica nem económica.
- Onde os nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar alguns.
Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser 'compradas', sem se fazer qualquer exame.
- Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não lhe dar o lugar.
- Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão.
- Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes.
Quanto mais analiso os defeitos de Santana Lopes e de Sócrates, melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem corrompi um guarda de trânsito para não ser multado.
Quanto mais digo o quanto o Cavaco é culpado, melhor sou eu como português, apesar de que ainda hoje pela manhã explorei um cliente que confiava em mim, o que me ajudou a pagar algumas dívidas.
Não. Não. Não. Já basta.
Como 'matéria prima' de um país, temos muitas coisas boas, mas falta muito para sermos os homens e as mulheres que o nosso país precisa.
Esses defeitos, essa 'CHICO-ESPERTERTICE PORTUGUESA' congénita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até se converter em casos escandalosos na política, essa falta de qualidade humana,
mais do que Santana, Guterres, Cavaco ou Sócrates, é que é real e honestamente má, porque todos eles são portugueses como nós, ELEITOS POR NÓS. Nascidos aqui, não noutra parte...
Fico triste.
Porque, ainda que Sócrates se fosse embora hoje, o próximo que o suceder terá que continuar a trabalhar com a mesma matéria prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada...
Não tenho nenhuma garantia de que alguém possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, ninguém servirá.
Nem serviu Santana, nem serviu Guterres, não serviu Cavaco, nem serve Sócrates e nem servirá o que vier.
Qual é a alternativa ?
Precisamos de mais um ditador, para que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror ?
Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa 'outra coisa' não comece a surgir de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados... igualmente abusados!
É muito bom ser português. Mas quando essa portugalidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como Nação, então tudo muda...
Não esperemos acender uma vela a todos os santos, a ver se nos mandam um messias.
Nós temos que mudar. Um novo governante com os mesmos portugueses nada poderá fazer.
Está muito claro... Somos nós que temos que mudar.
Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda a acontecer-nos: Desculpamos a mediocridade de programas de televisão nefastos e, francamente, somos tolerantes com o fracasso.
É a indústria da desculpa e da estupidez.
Agora, depois desta mensagem, francamente, decidi procurar o responsável,
não para o castigar, mas para lhe exigir (sim, exigir) que melhore o seu comportamento e que não se faça de mouco, de desentendido.
Sim, decidi procurar o responsável e ESTOU SEGURO DE QUE O ENCONTRAREI QUANDO ME OLHAR NO ESPELHO.
AÍ ESTÁ. NÃO PRECISO PROCURÁ-LO NOUTRO LADO.
E você, o que pensa ?... MEDITE !»

EDUARDO PRADO COELHO - in Público
Já há algum tempo que o hoje falecido Eduardo Prado Coelho escreveu este texto. Recebi-o hoje novamente por e-mail e achei por bem publicá-lo. Vai ao encontro de muito do que aqui se tem escrito.

4 comentários:

  1. Pessoalmente, penso que não é uma falta de matéria prima. Da mesma maneira que há poucas mulheres na política, também há poucas pessoas de mérito na política. Penso que não é falta de matéria prima mas sim falta de representatividade. A política tem a capacidade de atrair e agregar políticos decepcionantes.
    "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely. Great men are almost always bad men" - Lord Acton

    ResponderExcluir
  2. Respeito muito a escrita de Eduardo Prado Coelho, mas permitam-me deixar aqui uma nota: que se "falta cumprir Portugal" todos sabemos desde Fernando Pessoa (e suspeitávamos já antes, sem certezas). Contudo, de todos os problemas graves, intrínsecos, causadores de entraves o maior será por ventura a auto-lamentação, o fatalismo dramático da condenação ao infortúnio - como mártires dos defeitos congénitos...

    São evidentes na nossa sociedade alguns dos problemas acima mencionados, mas não me permito a por eles a caracterizar ou a definir. Somos mais que isso e acredito que damos o nosso melhor para a mudança positiva.

    ResponderExcluir
  3. Pondo de lado o chico-espertismo, a falta de civismo multifacetada (descrita brilhantemente por Eduardo Prado Coelho) e a auto lamentação sugerida pelo JV, penso que aquilo que mais nos afecta é a "falta de educação". Falta dela todos temos um pouco e como país nota-se a léguas. Os portugueses são velhos rabugentos que outrora foram crianças pequenas um pouco mal-educadas. Cresceram tortas..

    Andamos à deriva faz muitos anos. Desde o D. Sebastião até ao Sócrates dos nossos dias, aquilo que o povo português mais precisa é de um "líder" com os genes e a pujança de outros tempos. Porque o Portugal de Fernando Pessoa é um mito, há-de sempre faltar cumprir-se Portugal. Esta sim..a verdadeira fatalidade...

    ResponderExcluir
  4. Pior do que o chico-espertismo, só mesmo o seu fomento! Algo que temos vindo a assistir ao longo dos anos, em nome de medidas supostamente sociais, que não são mais do que redes lançadas ao mar dos votos populares.

    ResponderExcluir

Atire a sua pedra, vá!