segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O Cartão de Cidadão e o abstencionismo forçado

O Cartão de Cidadão é dos maiores avanços tecnológicos do nosso país, mas ainda não se deu por isso porque o país ainda não lhe seguiu os passos (assunto que já referi noutra mensagem [1] e que irei continuar a referir futuramente). E, claro, quem não sabe como o sistema foi concebido e como funciona, assume que as culpas da abstenção forçada, causada aos utentes do Cartão de Cidadão no domingo último, são culpa do mesmo. Nada mais errado.

O Cartão de Cidadão veio substituir 5 antigos cartões, ou identidades, se assim preferirem: identidade civil, identidade fiscal, identidade para o SNS, identidade para a Segurança Social e identidade eleitoral. Assim, o Cartão de Cidadão possui, de uma forma legível por humanos, o BI, o NIF, Número de Segurança Social e o Número de Utente da Saúde do seu titular. Mas, estranhamente, não possui o número de eleitor. Curioso; ou talvez não!

De facto, a lógica é simples. O Cartão de Cidadão possui a morada completa do titular, e a morada está afecta a um círculo eleitoral, digamos assim, o qual atribuí um número de eleitor local (i.e. não universal) ao titular. Isto, claro, se o titular tiver mais de 18 anos, o que pode não acontecer. Logo, o número de eleitor e o círculo eleitoral, caso tenham de existir, são automaticamente atribuídos a um cidadão de acordo com a sua morada actual. Se mudarem de morada não precisam de mudar de cartão, apenas precisam de alterar a informação guardada internamente ao seu smartcart; e o círculo eleitoral e número de eleitor mudam transparentemente e sem mais burocracias. Como é evidente, o Cartão de Cidadão não pode ter o número de eleitor na sua informação externa porque o mesmo pode ser alterado sem uma re-emissão do cartão. Aliás, o Cartão de Cidadão minimiza a quantidade de informação mutável do cidadão (i.e. que pode mudar ao longo da sua vida), e apenas a fotografia é informação mutável que faz parte da informação compreensível por humanos.

Qual foi, então, o problema? O problema foi causado pelo facto de que muitas pessoas que mudaram para o Cartão de Cidadão estavam efectivamente recenseadas em círculos onde já não moravam. Devido aos automatismos inerentes ao Cartão de Cidadão, essas pessoas mudaram de círculo eleitoral e, logo, de número de eleitor. E essa informação não faz parte da informação base do Cartão de Cidadão nem deveria fazer, porque, como veremos adiante, ela é totalmente dispensável. Mas como essas pessoas não conseguiram obter essa informação no dia da eleição, e ela ainda é necessária, não puderam dirigir-se à mesa de voto correcta e não puderam votar.

Mas para que serve o número de eleitor? Actualmente serve apenas para “espalhar” votantes de um círculo eleitoral por várias mesas (serve para concretizar um processo de hashing). E é por isso que as pessoas têm de obter, via Internet ou SMS, o mapeamento entre BI + data de nascimento à local de voto + número de eleitor. E vale a pena manter este número? Claro que não, bastava ter uma ordenação por nome ou por BI para o processo ser mais simples. Sabendo o local onde se vota (e isso é fácil, basta perguntar aos vizinhos), e tendo votantes distribuídos por mesas de acordo com a ordem alfabética do seu nome, ou ordem numérica do seu BI, era perfeitamente dispensável o número de eleitor. Portanto, não é preciso alterar o Cartão de Cidadão, não é preciso voltar ao passado, não é preciso ter mais sistemas computacionais ultra-potentes, não é mesmo preciso ter computadores nas mesas de voto. Basta apenas mudar o processo de afectação de votantes a mesas. Ou seja, é preciso repensar e mudar o “processo de negócio”, e não adaptar uma nova realidade a “processos de negócio” antiquados.

O que correu mal com o sistema que, no dia das eleições, deveria mapear BI + data de nascimento para local de voto + número de eleitor. Não sei. De todo. Apenas sei que fiz um pedido por SMS às 12 e recebi a resposta às 16:30. Entretanto já tinha conseguido a resposta via Internet e não precisei de ficar à espera. (a data de nascimento creio que serve apenas para não obter o local de voto de todos os Portugueses através do sistema usando uma pesquisa exaustiva bastante eficaz; mas isto é uma especulação minha).

Mas algumas coisas posso dizer que estavam erradas. Por exemplo, o sistema não era robusto contra ataques DOS (Denial of Service). Por exemplo, como os SMS não tinham custos, alguém poder-se-ia ter divertido a gerar SMS em grande quantidade, de forma a saturar o sistema. Da mesma forma, como via Internet os pedidos podiam ser automatizados (não se usaram CAPTCHAs [Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart]), era perfeitamente possível inundar o sistema com pedidos, evitando desse modo que os votantes legítimos pudessem obter os resultados desejados. Eu não estou a dizer que foi isto que aconteceu (pode ter sido um simples problema de dimensionamento), mas isto era perfeitamente possível.

A terminar, este problema pode ser extrapolado para avaliar o futuro das eleições via Internet. As eleições são processos muito exigentes em termos de requisitos (por vezes contraditórios); um deles é que a eleição tem de ser iniciada e terminada num prazo bem definido e curto, e que não há normalmente direito a prazos suplementares. E se, durante esse período, houver problemas causados por ataques contra instâncias controladoras do processo eleitoral, isso poderá significar o caos na execução do processo se tal não for devidamente acautelado. Esta fragilidade pode ser facilmente eliminada no processo actual, se não se usar, claro, o malfadado serviço que nestas eleições tão má conta deu do seu recado. Mas em votações via Internet isso é muito mais complexo e difícil de garantir, a menos que se faça um investimento gigantesco numa infra-estrutura com protecções especiais.

11 comentários:

  1. é o mal do nosso país, até aquilo em que dá um passo em frente fica a meio. para quê o numero de eleitor? para nada, pois como foi dito podia ser usado o bi.
    para que um nif diferente do bi? sei pouco de economia ou de finanças, mas à primeira vista digo: para nada. cada pessoa individual usava o numero do bi. os colectivos aí sim teriam outro numero. e para que um numero de utente? nada! e porque eu ser o numero xxxx num hospital e o yyyy noutro? nada!
    na realidade acho que na maioria dos casos o numero do bi (ou outro nome que se queira dar) chegaria para tudo (ou quase).
    e porque não fazer uma mega base de dados com todos os dados dos cidadãos? isso sim seria bom. ao mudarmos a morada num sitio ficava logo alterada em todo o lado. ao nos ser atestado o óbito num hospital a informação constava logo na segurança social e não se assistia a casos vergonhosos que volta e meia se ouvem nas noticias!!!

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  2. André, concordo com tudo o que disses-te. Realmente a número de eleitor não têm nenhuma utilidade. O mesmo pode ser dito do NIF, segurança social e número de utente, como disse o comentário anónimo. São "resíduos" dos sistemas antigos e da falta de centralização e de cruzamento de dados do passado.

    Mas André, não referis-te algo que para mim não tem justificação. A passividade do portugueses... Informação sobre as alterações inerentes aquando da adesão ao cartão do cidadão não falta (ver aqui...).

    E o facto dos "eleitores" apenas se importarem em saber qual o seu número de eleitor e qual a sua localidade de recenseamento mesmo em cima no momento em que querem votar também não ajudam à festa. Já se sabia da data da eleição à meses. E a informação sobre o eleitor estão disponíveis assim que se obtém o cartão do cidadão (CC), tanto pela Net como pelo serviço de SMS. Mesmo assim a grande maioria, como o André e o Fausto (como ele referiu num post anterior), apenas se preocupou em saber a sua situação no próprio dia.

    Os cidadão têm de ser mais proactivos e responsáveis. A mim foi-me informado aquando da criação do meu CC que o meu número de eleitor e mesa de voto ia ser alterado para a minha nova morada. A quem não foi devidamente informado, deveria-se ter informado atempadamente. Informação não falta. Portal do CC, portal do eleitor e portal da direcção geral da administração interna sobre recenseamento eleitoral.

    É só a minha opinião...

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  3. Concordo com o Diogo. Infelizmente, feito artista, não consultei nenhum dos sitios, nem me informei aquando da criação do meu cc. Rsultado: só consegui votar 60 km depois :D

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  4. Não era tão simples gerar uma localização GPS e um link do google maps ao dar o resultado da mesa de voto?
    Um sistema verdadeiramente simplex.

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  5. Fausto, parece-me que tens aí ideia para um projecto... Aproveita!

    De referir que as lista das mesas de voto estão afixadas das juntas de freguesia, pelo menos uma semana antes do dia das eleições (não sei o tempo exacto).

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  6. O problema, no meu caso, foi mudarem-se a mesa de voto apesar de manter a mesma freguesia.
    Pelos vistos avisaram a algumas pessoas que ao mudar para o cartão do cidadão, poderiam mudar de mesa de voto, o que não foi o meu caso.

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  7. Não é bem assim. O número de eleitor serve para fazer cumprir a constituição, que diz que não pode existir um número único que sirva para indexar a identidade do cidadão. É por isso que não se pode guardar o BI nestas bases de dados, caso contrário o BI funcionaria passaria a funcionar como número único e permitiria o cruzamento massivo de informação o que é anti constitucional. E ainda bem que assim é, se não vejamos porquê para este caso em concreto.

    Nos cadernos eleitorais fica registado quem foi ou não votar. Não me chateia muito porque nesses cadernos só consta o meu nome e é bem provável que existam mais pessoas com o mesmo nome e como não existe uma tabela de mapeamento entre o número de eleitor e o BI ninguém fica a saber que o cidadão eleitor com o número "n", é o mesmo cidadão com o BI "m", que vive na rua X, tem o número de telefone Y e trabalha no emprego Z, etc.... que não foi votar e portanto é um mau cidadão.

    Porque é que isto é importante, porque amanhã alguém se pode lembrar que estes "maus" cidadãos vão deixar de poder ter cargos públicos (acontece no Brasil !!), vão deixar de poder receber subsídios, ou até deixar de receber assistência médica. Parece ridículo, mas isto é tão ridículo como os Judeus que se casaram ou tiveram filhos no inicio do século XX terem ido parar aos campos de concentração por os seus nomes constarem nos registos casamento e nascimentos das Sinagogas da Europa. A História ensinou-nos que com os dados pessoais não se brinca. Por muito inócuos que eles sejam nunca se sabe como é que eles irão ser utilizados no futuro.

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  8. Caro Manuel Eduardo Correia, o que a Constituição diz é que não pode haver um número único, mas não diz que tem de haver um número para tudo :-)

    Repare, nós damos o BI e data de nascimento a um serviço que sabe o nosso número de eleitor, esse serviço imprime os cadernos eleitorais ordenados pelo número de eleitor e nesses cadernos está o número de eleitor e o nome.

    Portanto, o número de eleitor só serve para duas coisas: encontrar a mesa de voto e, eventualmente, desambiguar pessoas com igual nome que votem no mesmo local.

    O que eu defendo, e não vejo porque não pode ser feito, é que se retire de todo o número de eleitor do processo sem o substituir por qualquer outro número. Basta que os cadernos eleitorais estejam ordenados por nomes (que já lá estão agora), que as pessoas escolham a sua mesa por ordem alfabética de nomes e que nomes iguais sejam desambiguados com alguma informação extra, como parte ou a totalidade da data de nascimento, a data de validade do Cartão de Cidadão, a soma de controlo do BI, etc. Note que este extra só precisa de lá estar para nomes iguais e pode ser feito a nível nacional, para impedir que alguém com um nome muito comum possa votar em vários locais (admitindo que os conhece, o que não é fácil).

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