terça-feira, 23 de março de 2010

O Nome da Rosa

O brilhante romance homónimo de Umberto Eco gira em redor de um encontro onde se discutirá uma questão pertinente para o poder da época: Cristo era, ou não, dono das suas vestes? A questão, mais subtil, está relacionada com o poder temporal e a ostentação da Igreja, que os monges mais despojados repudiavam. Face a todo o drama que entretanto acontece na Abadia onde foi agendado o encontro (suicídios, favores sexuais, perseguição do Santo Ofício, mortes na fogueira, acesso a livros proibidos, incêndio na biblioteca), ficamos com a sensação que o motivo da reunião é demasiado insignificante e irrelevante para os problemas que, de facto, existiam e careciam de atenção.

Na nossa sociedade passa-se, neste momento, algo de similar. Os partidos da Oposição resolveram criar uma Comissão de Inquérito para averiguar um facto, para eles, de superior relevância: se o Primeiro-Ministro sabia ou não do plano da PT para comprar parte da Prisa e se, portanto, mentiu ao Parlamento quando questionado sobre esse seu conhecimento (que negou).

No entanto, a questão é irrelevante. Um Primeiro-Ministro pode conhecer muita informação que não divulgará nunca a um Parlamento quando questionado sobre a mesma. Um Primeiro-Ministro não é um cidadão normal, é um cidadão que tem acesso a fontes de informação que outros não têm por inerência do cargo. E o Parlamento não tem o poder para que o Primeiro-Ministro lhe divulgue o que conhece com requisitos de reserva de confidencialidade; mais a mais, a história encarregou-se de mostrar o quanto os nossos parlamentares foram diligentes a divulgar a informação confidencial que lhes foi confiada por um membro do Governo (divulgação da lista de membros da Secreta Militar fornecida por Veiga Simão).

A questão não deveria ser, portanto, se o Primeiro-Ministro conhecia ou não o plano. Porque se conhecia, não devia fazer uso da mesma para influenciar a PT, porque a PT é fundamentalmente uma empresa privada e essa influência seria intolerável. Se não conhecia, nada podia fazer. Portanto, quer conhecesse, quer não, a questão é irrelevante, porque em qualquer dos casos nada deveria fazer até que o Governo fosse chamado a pronunciar-se sobre a compra, ou seja, para saber se fazia valer ou não a sua Golden Share para impedir a compra.

Portanto, a questão deveria ser: a decisão da compra da Prisa pela PT teve ou não origem no Primeiro-Ministro ou no Governo? Porque se foi, aí sim, houve uma clara manipulação da PT para fins pouco claros. Mas, como costume, não é isso que se pergunta e não é isso que se quer saber, porque o que interessa é "telenovela". E, de preferência, rasca.

Fechando a analogia, a pergunta correcta n’O Nome da Rosa deveria ter sido: será que fazia sentido a Igreja ter tanto poder temporal e investir em tanta ostentação, quando tal não foi a mensagem de Cristo, tendo mesmo ido em sentido contrário? Mas, lá como aqui, fez-se a pergunta errada.

2 comentários:

  1. Eu concordo plenamente contigo. No entanto, penso que não é só essa a questão. A questão é que é mais facil tapar os olhos do chamado "zé povinho" com discursos populista do que deixar que as pessoas se apercebam que em Portugal faz-se oposição por oposição e não importa se as ideias são boas ou não, o que interessa é ser contra. Como não conseguem vencer eleições a partir de um debate de ideias preferem entrar em novelas estúpidas e que só vendem jornais e nao ajudam em nada a resolver os problemas do pais. Sou uma apoiante de Socrates, não tenho medo nem vergonha de o admitir. Apesar de algumas má politicas penso que tem tentado acabar com uma má politica que começou no tempo do nosso actual Presidente da Republica. Por isso só quero deixar este pensamento, será que em vez de criarem comissões de inquérito para achar a "verdade" em processos do tipo TVI, gastando dinheiro de contribuintes, não seria melhor juntarem pessoas crediveis e com ideias para realmente melhorar o estado do país?? Acho que vale a pena pensar nisso.

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  2. Sabes o que me deixa de algum modo contente? É a cada dia que passa, a cada nova pessoa que conheço, encontrar cada vez mais indivíduos fartos de telenovelas, de populismo. Isso também me assusta, porque sinto demasiada tensão na sociedade. Irá a classe politica adaptar naturalmente o seu estilo a uma diferente exigência dos cidadãos, ou então... precisaremos de um corte abrupto? Não sei... Avizinham-se tempos difíceis.

    Tal como dizes, André, tudo isto é uma não-questão. Tudo isto não passa de paródia. As questões realmente cruciais ninguém as coloca, sobretudo porque quem tem telhados de vidro...

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