quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Foi um fartar-vilanagem

Nota prévia: sou funcionário público e estou incluído nos que vão ver o seu ordenado reduzido.

Durante anos, continuamente desde o 25/Abril, aumentaram-se progressivamente as regalias e os direitos dos trabalhadores em geral e não houve um mínimo de atenção à sustentabilidade do futuro. Não vou apontar ninguém em particular nem ilibar ninguém da mesma forma, porque considero que todos os partidos que governaram seguiram a mesma forma facilitista de comprar apoios e votos.

Vejamos. Até 2002, a reforma era calculada de acordo com os ordenados dos últimos 5 anos de trabalho. É fácil de perceber a motivação: os funcionários públicos normalmente só sobem na carreira (nem que seja pela simples passagem de tempo, i.e. sem que subam hierarquicamente), pelo que assim reformavam-se sempre com um montante substancial, garantidamente. Pelo contrário, muitos trabalhadores do universo privado, que muitas vezes tinham problemas de emprego nos últimos anos antes da reforma, sendo preteridos em detrimento de outros mais jovens e sujeitando-se muitas vezes a trabalhar com ordenados muito baixos, viam a sua reforma ser miseravelmente reduzida precisamente por serem apenas considerados os vencimentos dos últimos 5 anos de trabalho.

Actualmente este processo de cálculo foi alterado e contempla mais anos. Em 2002 passaram a ser considerados os 10 melhores dos 15 últimos vencimentos anuais. Após 2007 passou a ser uma fórmula mais complexa que pondera a fórmula anterior com uma outra que tem em conta toda a carreira contributiva. Mas, a meu ver, contínua errado, porque deveria considera apenas a totalidade da vida contributiva. Só assim se pode ser justo. E isto é simples de aplicar, e deveria ser aplicado com efeitos retroactivos.

Outra. Nos tempos da outra senhora, os funcionários públicos ganhavam mal e, em contrapartida, tinham algumas benesses. Por exemplo, ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado). Porém, agora é pura demagogia dizer que um funcionário público ganha mal, para além de que não pode ser despedido (e que valor isto tem actualmente) e até consegue progredir na carreira (temos algumas personagens famosas neste país que progrediram na carreira sem sequer a exercer, mas não vou agora entrar nessa guerra). E, para além disso, continuam a usufruir da ADSE. Isto não faz sentido algum, e a ADSE e sistemas similares, que são verdadeiras aberrações herdadas do passado para captar votos, são mais um exemplo de como o sistema fui sugado até ao tutano. Sim, eu sei que os funcionários públicos descontam para a ADSE, mas nem isso deveria acontecer nem a ADSE deveria existir. E, para além disso, acredito que a ADSE é deficitária, ou seja, que as verbas que recebe dos vencimentos não são superiores ao custo da sua estrutura e aos valores que paga (para os quais não existem sequer tectos anuais nem franquias, mas apenas percentagem de comparticipação).

E poderia continuar por aqui fora. Ano após ano, governo após governo, as receitas do Estado foram sendo progressivamente sugadas através de distorções injustificáveis na distribuição de ordenados, pensões e benesses. E sempre com fins eleitoralistas. É uma das perversões da democracia. E agora chegámos perto do fim, não é possível mais continuar esse fartar-vilagem, sob risco de nos tornarmos uma segunda Islândia; é preciso mesmo reduzir esta sangria.

Mas há ainda muito por fazer para alargar e aplicar com mais justeza as reduções na sangria do Estado. Por exemplo, se as pensões fossem mais moderadas e equilibradas, não seria necessário ir pedir tanto de Segurança Social às empresas, e isso poderia torná-las mais competitivas e capazes de empregar mais pessoas. Não é possível continuar a pedir às empresas para darem emprego e produzir/exportar mais quando elas são também sugadas até mais não terem.

Mas, infelizmente, todos acham que o sistema está errado e que deveria ser corrigido, mas somente se isso não os afectar*. E os partidos políticos, como sempre, minam todas e quaisquer alterações significativas do status quo por questões eleitoralistas. E sempre que se fala em reduções em pensões, nem que as mesmas sejam elevadas, cai o Carmo e a Trindade. Como sempre desde o 25/Abr. E assim não vamos lá, ainda para mais com um governo minoritário (mas sobre isso escreverei outra mensagem).

*Any customer can have a car painted any colour that he wants so long as it is black, Henry Ford



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Músicos extraordinários

De quando em quando aparecem músicos extraordinários com o dom de apenas produzirem obras de uma enorme beleza (bom, dependendo dos gostos, claro). No meu top estavam Mozart e Schubert, imbatíveis, e ambos incompreendidos no seu tempo.

Agora descobri mais um, mas na área do pop: Adam Young, a alma (solitária) por detrás dos projectos Sky Sailing e Owl City. As obras não são muitas (4 CDs, um dos quais duplo), mas já dá para avaliar a extraordinária qualidade e versatilidade desse moço.

A matemática da redução de ordenados (II)

A pergunta do Zé à minha mensagem original fez-me ver que eu não tinha avaliado o que acontecia depois dos 4200 Euros.

Pois bem, considerando a existência de 3 escalões, [1550-2000], [2050, 4200] e [4200, +inf], temos o seguinte gráfico das taxas de cada escalão:Para os montantes no intervalo [1550, 2000], o escalão é decrescente desde 100% até 14%.
Para os montantes no intervalo [2050, 4200], o escalão é constante e de 16%.
Para os montantes superiores a 4200, o escalão é uma vez mais decrescente desde 12% até 10%, para onde tende assimptoticamente.

Considerando que os escalões do IRS são normalmente crescentes, não deixa de ser curiosa esta evolução inversa dos escalões. O que se vê, claramente, é que o esforço percentual (segundo a lógica do IRS) pedido a quem ganha mais de 1500 Euros é menor à medida que o ordenado aumenta. E isto não é nada evidente na proposta do Ministério das Finanças, antes pelo contrário.

Caminhos para o futuro de costas voltadas

O Portugal do futuro, com Via Verdes por todo o lado, ainda não se encontrou com o outro Portugal do futuro, o do Cartão de Cidadão.

O processo de adesão on-line para a Via Verde é tudo menos on-line. O que se faz on-line é preencher um formulário que gera um PDF que se tem de imprimir, assinar e enviar, juntamente com uma cópia em papel dos documentos do carro, via correio tradicional para a Via Verde Portugal, S.A.

Isto é um processo arcaico para a tecnologia actual.

Com o Cartão de Cidadão seria possível estabelecer uma sessão HTTPS autenticada com um servidor da Via Verde, que extrairia o nosso nome do certificado de chave pública, poupando-nos o tempo de preencher essa informação no formulário. A cópia dos documentos do carro poderia ser enviada para gerar o PDF final, contendo todos elementos do pedido, o qual poderia então ser assinado digitalmente pelo requerente usando o seu Cartão de Cidadão. Finalmente, o PDF assinado seria enviado para ser processado, informaticamente, pela Via Verde Portugal S. A., desde que o PDF contivesse suficiente meta-informação para além da imagem (o que é trivial).

Papel? Assinaturas manuais sem qualquer validade? Correio tradicional? Processamento manual? Meus caros, estamos no Séc. XXI.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A matemática da redução de ordenados

Devido ao deficit crónico do nosso Estado, a medida (esperada) foi a de reduzir a despesa do Estado em salários. Não vou discutir se a mesma é ou não a medida adequada, nem se não haveria alternativas. Vou apenas analisar a sua forma.

A decisão tomada foi a de reduzir o salário bruto dos ordenados sob jurisdição do Estado que fossem superiores a 1500 Euros. O que esperava que acontecesse era que houvesse uma espécie de pré-IRS com um único escalão, ou vários escalões crescentes, a partir de 1500 Euros, sendo nulo para os ordenados inferiores. Mas, como veremos, não é assim que acontece.

A fórmula de cálculo do montante a retirar aos ordenados é tão complexa que eu não a vou aqui reproduzir. Em vez de a tentar compreender (e explicar), limitei-me a fazer uma tabela com os ordenados e as respectivas reduções (disponíveis aqui) e depois raciocinei sobre esses valores. Mas deixem-me referir, a respeito da dita fórmula de cálculo, que a mesma usa valores crescentes de percentagens consoante o ordenado (3,5% entre 1500 e 2000 Euros, algo entre 3,5% e e 10% entre 2000 e 4200 Euros, e 10% para ordenados superiores a 4200 Euros). Portanto, existe uma sensação que, à partida, existe algo similar a 3 escalões crescentes de pré-IRS.

Relembremos como é calculado um imposto IRS para um dado ordenado. Quando se atinge um dado escalão, a taxa desse escalão não é aplicada a todo o ordenado mas apenas ao montante acima do limite inferior do escalão. Ao montante do ordenado abaixo desse limiar aplicam-se as regras dos escalões abaixo, sucessivamente.

Considerando então a redução anunciada dos ordenados como um único escalão de IRS (a que chamei pré-IRS) , vamos calcular qual é a taxa de imposto aplicada considerando a metodologia de aplicação do IRS. Assim, até 1500 Euros temos um escalão sem imposto. Mas acima de 1500 Euros temos um escalão (?) com uma variação de taxa curiosa (ver gráfico abaixo), o qual foi calculado do seguinte modo:

percentagem = abatimento / (ordenado – 1500)



Com efeito, temos uma taxa variável e decrescente, começando em 100%, entre os 1550 e os 2000 Euros! Este resultado, porém, está absolutamente certo. As regras foram feitas de modo a que quem ganhasse 1550 Euros passasse a ganhar 1500 Euros (isto está explicitamente indicado no documento acima referido, para que não houvesse confusões). Isto significa que daqui em diante quem ganhava 1500 ou 1550 Euros passará a ganhar, em qualquer caso, 1500 Euros. Logo, a taxa de imposto para quem ganhava 1550 é de 100% (todo o rendimento acima de 1500 Euros é retirado).

Após essa taxa inicial de imposto a 100% observamos que a taxa diminui gradualmente até que o ordenado atinja 2000 Euros, altura em que a taxa atinge o seu valor mais baixo (14%). A partir desse ponto, a taxa sobe lentamente, convergindo para um valor de cerca de 15.5%.

Concluindo, se a redução de ordenados for considerada sob a perspectiva de um pré-IRS, os escalões de taxa não vão aumentando em três escalões diferentes, mas, pelo contrário, são muito elevados no início (até aos 2000 Euros) e depois estabilizam. Portanto, e seguindo a filosofia do IRS, os ordenados entre 1500 e 1950 Euros são os mais penalizados com esta medida fiscal. Na prática, existem dois escalões: um primeiro, com uma taxa decrescente entre 100% e 14%, para os menores ordenados afectados, e outro com uma taxa fixa de cerca de 15% para os ordenados superiores.

Escalões crescentes? 3 escalões?

Uma conclusão curiosa: dos que irão ser afectados, os que percentualmente são mais beneficiados são os que ganham 2000 Euros, e os que percentualmente são mais prejudicados são os que ganham 1550 Euros.

Diria o saudoso Pessa: “E esta, hém?”