Nota prévia: sou funcionário público e estou incluído nos que vão ver o seu ordenado reduzido.
Durante anos, continuamente desde o 25/Abril, aumentaram-se progressivamente as regalias e os direitos dos trabalhadores em geral e não houve um mínimo de atenção à sustentabilidade do futuro. Não vou apontar ninguém em particular nem ilibar ninguém da mesma forma, porque considero que todos os partidos que governaram seguiram a mesma forma facilitista de comprar apoios e votos.
Vejamos. Até 2002, a reforma era calculada de acordo com os ordenados dos últimos 5 anos de trabalho. É fácil de perceber a motivação: os funcionários públicos normalmente só sobem na carreira (nem que seja pela simples passagem de tempo, i.e. sem que subam hierarquicamente), pelo que assim reformavam-se sempre com um montante substancial, garantidamente. Pelo contrário, muitos trabalhadores do universo privado, que muitas vezes tinham problemas de emprego nos últimos anos antes da reforma, sendo preteridos em detrimento de outros mais jovens e sujeitando-se muitas vezes a trabalhar com ordenados muito baixos, viam a sua reforma ser miseravelmente reduzida precisamente por serem apenas considerados os vencimentos dos últimos 5 anos de trabalho.
Actualmente este processo de cálculo foi alterado e contempla mais anos. Em 2002 passaram a ser considerados os 10 melhores dos 15 últimos vencimentos anuais. Após 2007 passou a ser uma fórmula mais complexa que pondera a fórmula anterior com uma outra que tem em conta toda a carreira contributiva. Mas, a meu ver, contínua errado, porque deveria considera apenas a totalidade da vida contributiva. Só assim se pode ser justo. E isto é simples de aplicar, e deveria ser aplicado com efeitos retroactivos.
Outra. Nos tempos da outra senhora, os funcionários públicos ganhavam mal e, em contrapartida, tinham algumas benesses. Por exemplo, ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado). Porém, agora é pura demagogia dizer que um funcionário público ganha mal, para além de que não pode ser despedido (e que valor isto tem actualmente) e até consegue progredir na carreira (temos algumas personagens famosas neste país que progrediram na carreira sem sequer a exercer, mas não vou agora entrar nessa guerra). E, para além disso, continuam a usufruir da ADSE. Isto não faz sentido algum, e a ADSE e sistemas similares, que são verdadeiras aberrações herdadas do passado para captar votos, são mais um exemplo de como o sistema fui sugado até ao tutano. Sim, eu sei que os funcionários públicos descontam para a ADSE, mas nem isso deveria acontecer nem a ADSE deveria existir. E, para além disso, acredito que a ADSE é deficitária, ou seja, que as verbas que recebe dos vencimentos não são superiores ao custo da sua estrutura e aos valores que paga (para os quais não existem sequer tectos anuais nem franquias, mas apenas percentagem de comparticipação).
E poderia continuar por aqui fora. Ano após ano, governo após governo, as receitas do Estado foram sendo progressivamente sugadas através de distorções injustificáveis na distribuição de ordenados, pensões e benesses. E sempre com fins eleitoralistas. É uma das perversões da democracia. E agora chegámos perto do fim, não é possível mais continuar esse fartar-vilagem, sob risco de nos tornarmos uma segunda Islândia; é preciso mesmo reduzir esta sangria.
Mas há ainda muito por fazer para alargar e aplicar com mais justeza as reduções na sangria do Estado. Por exemplo, se as pensões fossem mais moderadas e equilibradas, não seria necessário ir pedir tanto de Segurança Social às empresas, e isso poderia torná-las mais competitivas e capazes de empregar mais pessoas. Não é possível continuar a pedir às empresas para darem emprego e produzir/exportar mais quando elas são também sugadas até mais não terem.
Mas, infelizmente, todos acham que o sistema está errado e que deveria ser corrigido, mas somente se isso não os afectar*. E os partidos políticos, como sempre, minam todas e quaisquer alterações significativas do status quo por questões eleitoralistas. E sempre que se fala em reduções em pensões, nem que as mesmas sejam elevadas, cai o Carmo e a Trindade. Como sempre desde o 25/Abr. E assim não vamos lá, ainda para mais com um governo minoritário (mas sobre isso escreverei outra mensagem).
*Any customer can have a car painted any colour that he wants so long as it is black, Henry Ford