Tomei conhecimento com a obra de Saramago algures no início dos 80s, quando a minha mãe me emprestou o Memorial do Convento para ler. E desde esse momento nunca mais me parei de comprar e ler os seus livros. Lembro-me de procurar ansiosamente os seus novos livros e de os ler sofregamente. António Vitorino d’Almeida, no seu livro “Músicas da Minha Vida”, descreve um episódio delicioso onde um monge do Mosteiro de St. Florian, onde Bruckner estudou, lhe ensina que uma cerveja se bebe do mesmo modo que se ouve uma obra de Bruckner: em grandes golos; como as obras de Saramago, digo eu.
Alguns dizem que a sua escrita é difícil, pesada, que não sabe colocar vírgulas. Um dia ouvi Saramago dizer que a sua escrita estava bem adaptada à leitura, porque os pontos finais não eram essenciais à mesma. Não vou entrar em polémicas; para mim a sua escrita é magnífica, é-me totalmente natural e muitíssimo agradável, é um exemplo notável de como colocar vírgulas, até porque é o seu elemento fundamental de pontuação. Quanto a dificuldade, sorrio só de comparar com algo como “o remorso de baltazar serapião”, de Valter Hugo Mãe, onde não se usam maiúsculas, ou nos diálogos cruzados sem referências aos discursantes em “Conversas na Catedral”, de Mario Vargas Llosa.
Tenho pena de não ter conhecimentos suficientes para avaliar alguns pormenores mais minuciosos de alguns dos seus livros que mais evidenciam a sua imensa cultura, como “O ano da morte de Ricardo Reis”. Mas, por outro lado, reconheço na sua obra uma grande sensibilidade para com as questões da justiça e do respeito pelo próximo. Por outro lado, adoro a sua incursão no fantástico não oco, não vazio de princípios, não isento de mensagem. Os livros dele que mais gosto são a “História do cerco de Lisboa”, que normalmente ninguém refere, e “Levantado do chão”, um romance essencial sobre as situações de quasi-escravatura e de abuso que se vivia no Alentejo de antes do 25/Abr.
Por ser comunista, Saramago enfrentou uma oposição serrada por esse facto, independentemente do que escrevia. Por romancear a história de Cristo, Saramago foi censurado por personagens que não merecem sequer que eu refira o seu nome. No entanto, Saramago, nas suas obras e na sua intervenção pública, era sobretudo um adepto dos direitos do Homem e dos princípios da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade; não da facção X ou Y.
Na sua “História do cerco de Lisboa”, o enredo desenvolve-se em torno de um “não” colocado por um revisor num texto sobre a história do cerco de Lisboa. Esse “não”, que leva a que uma frase passe a ser “os cruzados não ajudaram D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa”, está no início de uma redacção alternativa do cerco sem o contributo dos cruzados. A morte de Saramago está também no início de uma nova fase da sua obra, onde a mesma não mais poderá ser ampliada mas que demostrará, pela sua enorme qualidade, originalidade e intemporalidade, que Saramago jamais morrerá na nossa memória.
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